JOGO – DIVERSÃO OU PATOLOGIA?
Foi recentemente divulgada uma notícia no jornal Público que dá conta da integração da toxicodependência e do jogo patológico na rede de referenciação de comportamentos aditivos, no sentido de se promover uma intervenção precoce. Desta forma, aposta-se na intervenção dos cuidados de saúde primários como primeira linha terapêutica.
No mês de Janeiro de 2013 a Cosmopolitan Portugal publicou na sua revista mensal um artigo sobre o jogo patológico com o título “Sorte Malvada”. Neste artigo a jornalista Rita Tilly recorre à experiência de quem se deixou levar pelo vício e perdeu o controlo, explora os tratamentos disponíveis, e entrevista o psicólogo clínico Filipe Leão Miranda no sentido de aprofundar este tema.
Rita Tilly: Existe algum termo clínico para definir o vício do jogo?
Filipe Leão Miranda: Do ponto de vista clínico penso que podemos olhar para o vício do jogo sob duas perspetivas distintas. Do ponto de vista psiquiátrico, enquadra-se no diagnóstico de jogo patológico quando existe um comportamento desadequado em relação ao jogo e em que esteja presente, por exemplo, uma necessidade em aumentar consecutivamente as apostas, tentativas falhadas de controlo deste comportamento, uma incapacidade em deixar de jogar, a participação em atividades ilegais ou o colocar em causa relações familiares. Do ponto de vista compreensivo, pertence à família das dependências e das perturbações do comportamento impulsivo/compulsivo, como o consumo compulsivo, o trabalho excessivo, os distúrbios alimentares, o vício do sexo, o abuso das drogas ou do álcool.
RT: O que é considerado como uma dependência? Onde se traça a linha entre um hobby e um vício?
FLM: O ser humano constrói-se a partir de um estado de profunda dependência. A passagem da dependência para a autonomia, da imaturidade para a maturidade é realizada ao longo de toda a vida, e as dificuldades inerentes a este processo estão presentes em todas as fases. Usando as palavras do pai da psicanálise “… a vida é demasiado pesada, inflige-nos demasiadas dores, deceções, tarefas insolúveis. Para a suportar não podemos viver sem sedativos”. Estes “sedativos” poderão ser mais saudáveis, como a cultura e a criação, ou mais nocivos, como os vícios e as dependências.
É dentro deste contexto que o vício do jogo poderá ser compreendido, enquadrando o problema na história e percurso pessoal de cada um. Esta dependência poderá surgir como uma cura mágica das carências ao nível das relações afetivas, como uma forma alternativa de “enriquecer” a vida. Este pensamento mágico está também muito presente nos rituais e superstições que rodeiam o jogo (os jogadores mudam de lugares, de baralhos de cartas, têm amuletos de sorte, etc…).
A nossa sociedade tende a condenar as remunerações que não são resultado de trabalho e sacrifício. No entanto, o jogo poderá ser uma atividade social ou até mesmo profissional sem que seja considerada um problema, que apenas surge quando existe uma progressiva perda de controlo sobre as apostas e sobre as possíveis consequências.
RT: Qual é o perfil de um jogador patológico?
FLM: De uma forma geral o jogador patológico revela uma inteligência e capacidade de trabalho elevadas, sendo igualmente bastante competitivo. É atraído pelos desafios e pelo risco, que permitem um estado de tensão interior continuada e desejada, sendo que em caso de vitória poderá sentir-se poderoso, e em caso de perda, fracassado.
Penso fazer sentido relembrar Dostoyevky, escritor russo, e um jogador patológico que se viu incapaz de abandonar o vício, jogando de uma forma impulsiva e irracional, apenas conseguindo parar quando havia perdido tudo. Não deixa de ser interessante verificar que era após este período de perda que a sua produção literária atingia o seu auge e era reinvestida de criatividade.
RT: É verdade que a dependência do jogo pode provocar uma reação semelhante à da dependência de certas drogas?
FLM: De uma certa maneira podemos afirmar que sim. Dois dos critérios para a dependência de substâncias, são a tolerância e a síndrome de abstinência. Tolerância no sentido em que existe uma necessidade em ir aumentando os “consumos” para se obter o mesmo resultado, algo que está presente no jogo patológico quando existe um gradual aumento das apostas. E a síndrome de abstinência, que remete para um conjunto de sintomas associados à redução ou cessação do “consumo”, e que surge igualmente no jogo patológico sob a forma de irritabilidade e inquietação.
Tal como em algumas drogas esta dependência permite alcançar elevados níveis de excitação e prazer, que de alguma forma ajudam a bloquear sensações de ansiedade e depressão. O “problema” é que este efeito é apenas temporário e momentâneo…
Mas quando falamos de dependências temos que ir para lá da objeto de vício (compras, trabalho, comida, sexo, jogo, droga ou álcool), e centrar a questão nas relações afetivas consigo e com os outros, em que nada é suficiente, nunca se está tranquilo e verdadeiramente preenchido.
RT: Quais são os sinais a que a família e os amigos devem estar atentos?
FLM: Imagino que numa primeira fase possa ser muito difícil para a família e amigos se aperceberem de que algo poderá estar errado. Infelizmente, muitas vezes o problema é camuflado, e apenas se torna evidente quando atinge proporções de maior gravidade. Manter este vício muitas vezes envolve um contexto de engano e mentira, nem que seja pela crença de que será possível voltar a recuperar tudo.
No entanto, acho que poderemos estar atentos quando verificamos que alguém que nos é próximo se isola, afastando-se das suas relações sociais e familiares, e passa grande parte do seu tempo em locais de diversão e de apostas. Se a isto acrescentarmos pedidos de crédito a instituições financeiras, e pedidos de dinheiro emprestado a conhecidos sem que as razões sejam totalmente claras…
RT: A própria pessoa tem consciência dessa dependência?
FLM: Não e sim. É quase como se uma parte da pessoa não reconhecesse esta dependência como um problema, uma vez que “às vezes ganha-se, outras vezes perde-se” e tudo isso faz sentido naquele contexto, e uma outra parte tivesse consciência do problema mas vê-se incapaz de o controlar, uma vez que “é mais forte do que eu”. Em muitas situações, é apenas a presença de uma crise financeira que impele a pessoa a pedir ajuda e a reconhecer as suas dificuldades.
RT: O que pode a família/amigos fazer para ajudar a abandonar o vício?
FLM: É um facto que os jogadores compulsivos poderão precisar do apoio da família e amigos para abandonar esta dependência. Ainda assim, por mais que custe e cause sofrimento ao próprio e aos que o rodeiam, é muito difícil obrigar alguém a deixar de jogar. É o próprio que terá que tomar esta decisão e procurar ajuda, junto da família ou de profissionais.
Por vezes, e em períodos precoces do tratamento, é sugerida uma medida preventiva que passa por delegar o controlo das responsabilidades financeiras ao cônjuge, ou outra pessoa de confiança.
RT: Quais são os tratamentos a que o indivíduo pode recorrer?
FLM: O tratamento do jogo patológico é muitas vezes marcado por recaídas e pelo regresso às apostas. A isto se somam as complicações secundárias, como os problemas legais e as dificuldades financeiras, que muitas vezes interferem com o tratamento. No entanto, existem um conjunto de terapias que poderão dar resposta a este problema, e que normalmente são mais eficazes quando atuam em conjunto.
A psicoterapia individual, que permitirá ao jogador compreender os motivos que o levam a jogar, e a lidar com os sentimentos que poderão estar associados (depressão, culpa, etc…). Grupos de autoajuda que promovem um acompanhamento de pessoas com problemas semelhantes e que são fonte de apoio e suporte. Terapia familiar, no sentido de se criar um espaço de comunicação e de trabalho da confiança, uma vez que os problemas poderão envolver toda a família e desenvolver diversos conflitos. E a terapia farmacológica, uma vez que determinados fármacos poderão ajudar no alívio de sintomas e criar uma almofada para o restante tratamento.
RT: Quais são as principais consequências a que o vício do jogo pode levar?
FLM: Desde pequenas dívidas a um amigo, a uma crise financeira. Desde pequenos percalços no trabalho, a ruturas na carreira profissional. Desde conflitos interpessoais, a quebras conjugais. Em última instância poderá transformar-se num terramoto que abala todas as áreas da vida, traduzindo-se em desespero, e podendo levar ao suicídio.
Apesar do jackpot estar sempre no horizonte, raramente é alcançado. A riqueza e o valor terão de ser procurados noutros locais… como nas relações afetivas…