ESPELHO MEU, ESPELHO MEU
Na senda da “febre” das intervenções estéticas, e como estas se tornam viciantes, a Editora de Beleza da Máxima Carolina Silva escreveu um artigo sobre o tema, “Acreditem, isto não magoa”. Uma vez que estas intervenções tendem a ser procuradas por pessoas cada vez mais jovens, em alguns casos por adolescentes, entrevistaram o psicólogo clínico Filipe Leão Miranda no sentido de aprofundar este tema.
Carolina Silva: Os Lip Fillers são cada vez mais procurados em todo o mundo, particularmente por jovens que seguem o exemplo de celebridades adeptas deste procedimento (como é o caso de Kylie Jenner). O que justifica que cada vez mais jovens, em muitos casos adolescentes ainda, recorram a estas intervenções que alteram o rosto?
Filipe Leão Miranda: A imagem, o culto da imagem, e um conjunto de ideias sobre o que se considera belo, têm assumido um papel cada vez mais importante na sociedade atual. E como tal, muitas celebridades assumem-se como referências, não necessariamente pelos seus feitos ou realizações, mas simplesmente por apresentarem uma determinada imagem. A vontade dos jovens em se enquadrarem numa estética dominante poderá justificar em parte essa procura. Mas existem outras justificações. Devemos também ter em conta que o corpo, e o rosto, têm uma extrema relevância na estruturação da identidade durante a adolescência, e que as intervenções sobre o corpo têm sempre uma função relacional e social. Comunicando que o corpo lhes pertence e que detêm o seu controlo, ao serviço de uma autonomia em relação às figuras parentais. Cumprindo o desejo de se aproximarem de uma versão idealizada de si e de serem olhados de determinada forma pelo outro. Encenando a passagem e transformação de um corpo infantil para um corpo adulto e sexuado. Entre outras.
Mas não deixa de ser curioso que apesar de tudo, as intervenções cosméticas não permitem demarcar e acentuar uma diferença. Habitualmente resultam numa normalização e numa homogeneização a um determinado grupo a que se deseja pertencer, correndo-se o risco de no fim ficarem todos iguais. Neste sentido, valeria a pena ver a peça de teatro «O Feio» que creio estar em cena em Almada.
CS: Em muitos casos estas intervenções não se resumem a uma vez, as pacientes tendem a somá-las, sujeitando-se aos riscos inerentes. Há uma linha ténue entre a primeira vez e esta componente aditiva dos procedimentos estéticos que alteram o rosto?
FLM: São inúmeros os comportamentos humanos que detêm esse potencial, o de se tornarem aditivos e compulsivos (como o jogo, a bebida, o consumo, o trabalho, a alimentação, etc…). Mas o que sabemos é que nem sempre se relaciona exclusivamente com o comportamento em si, mas sobretudo com um conjunto de ideias, fantasias, medos e sofrimentos que lhe estão subjacentes, e dos quais o próprio muitas vezes nem tem consciência. É como se se procurasse ultrapassar um determinado mal-estar, uma experiência difícil, um sentimento doloroso através de manipulações compulsivas sobre um corpo, que tendem a revelar-se sempre insatisfatórias uma vez que operam apenas na superfície (tentando cumprir o mito de que uma aparência bela é suficiente para se alcançar a felicidade e resolver os problemas de autoestima).
CS: Como é que se identificam e separam os casos de transtorno dismórfico corporal em oposição a uma inofensiva alteração de alguma característica do rosto?
FLM: Todas as alterações do rosto ou qualquer cirurgia cosmética são significativas, desde logo porque detêm um significado para o próprio, e implicações ao nível da autoimagem e da autoestima. No entanto deve ficar claro que a procura deste tipo de intervenções não é por si só um sintoma ou indicador de doença mental, e que este comportamento não se encontra apenas em pessoas com Transtorno Dismórfico Corporal (TDC). Pacientes com TDC revelam um elevado sofrimento em relação a um defeito no seu próprio corpo que percecionam de forma distorcida, e com base numa avaliação que não é partilhada pelos outros. Revelam-se pacientes que nunca estarão satisfeitos com o resultado uma vez que aquilo que precisam não pode ser oferecido por uma cirurgia. Ainda assim, importa referir que estudos recentes1, sobre quem recorre à cirurgia cosmética, revelam que existe uma maior prevalência de pacientes com TDC em comparação com a sua prevalência na população geral.
CS: Que intervenção devem ter os pais, quando um adolescente pede lábios mais preenchidos como prenda de aniversário, por exemplo?
FLM: Parece-me que os pais podem intervir de diferentes formas. Primeiramente, é uma boa oportunidade para os pais poderem ajudar a transformar esta ideia cada vez mais vigente de que o corpo é apenas mais um objeto material. Ou seja, um objeto passível de ser manipulado, alterado e corrigido com a mesma facilidade com que se poderá tratar os demais objetos. Por outro lado, os pais poderão fomentar um espaço de reflexão no seio da família em que se possa pensar em conjunto quais os motivos e os significados de tal pedido. Por último, e caso se perceba que exista uma necessidade e uma vontade do jovem de aprofundar as suas dúvidas, poderão dar a possibilidade deste consultar um técnico de saúde mental que auxilie na compreensão de todas estas questões.
Qualquer uma destas possíveis intervenções ao alcance dos pais, têm sobretudo o intuito de permitir que o jovem ganhe mais tempo. Mais tempo para pensar e compreender os seus desejos e motivações, e mais tempo para poder amadurecer uma decisão. É importante ter presente que uma intervenção cosmética tem um impacto que se estende ao longo de muito tempo, e muitas vezes o impacto mais importante não é aquele que se encontra visível. O tempo também poderá ajudar a perceber se tal desejo assenta apenas numa questão de tendência, de moda ou de imitação, se tem raízes mais profundas no plano da fantasia, ou se de facto está de acordo com uma avaliação realista.
CS: A partir de que idade deve um pai permitir que um filho recorra a estas alterações faciais?
FLM: Devemos ter presente que a maturidade e o desenvolvimento emocional, assim como o processo de adolescência, tendem habitualmente a ignorar a idade cronológica. É um período de grandes modificações, quer seja no plano psíquico, emocional e físico, e segue um ritmo diferente em cada jovem. Seria desta forma imprudente generalizar e tentar definir uma idade a partir da qual os pais poderiam permitir que os filhos recorressem a esse tipo de intervenções.
Referências:
1Panayi, A. (2018). The Prevalence Of Body Dysmorphic Disorder In Patients Undergoing Cosmetic Surgery: A Systematic Review. In Psychiatria Danubina, 2015; Vol. 27, Suppl. 1, pp 438–444
Higgins, S., Wysong, A. (2017). Cosmetic Surgery and Body Dysmorphic Disorder – An Update. In Int J Womens Dermatol. 2018 Mar; 4(1): 43–48.