NARCISISMO NOS TEMPOS MODERNOS


A jornalista Ana Pago realizou uma reportagem sobre o narcisismo nos tempos modernos, que foi publicada na Revista Notícias Magazine com o título “A Febre do Eu”. Nesse artigo aborda as questões do narcisismo e o papel das redes sociais, entrevistando o psicólogo clínico Filipe Leão Miranda no sentido de aprofundar este tema.

Ana Pago: É fácil confundir narcisismo com amor-próprio? (Isto porque todos temos os nossos momentos de narcisismo, além de que o amor-próprio é fundamental para a preservação do equilíbrio psicológico.) Quando é que o narcisismo pode ser considerado doentio?

Filipe Leão Miranda: Deve existir alguma cautela quando se fala sobre narcisismo, sobretudo porque parece persistir uma tendência para se realizar uma avaliação puramente negativa e preconceituosa do mesmo. A presença de um narcisismo saudável é algo de fundamental para uma boa estruturação individual. Neste sentido, poderemos falar de narcisismo como uma capacidade de valorização que cada um tem de si próprio, da sua autoestima e autoimagem.

Porém, nem sempre o desenvolvimento segue os melhores trilhos e nem sempre o narcisismo se estabelece da melhor forma. Nesse caso, talvez faça mais sentido falar de defeito em vez de falarmos de doença. Defeito porque é como se houvesse algo que está em falta. Mas não deixa de ser uma falta inevitável, porque não existe uma infância perfeita (e ainda bem que assim o é), tornando esta falta como algo inerente a todo o ser humano. No fundo, estamos condenados a ser expulsos do paraíso. Mas há situações em que este sentimento de insuficiência atinge dimensões preocupantes, em que se encontra um grande sofrimento e desequilibro emocional.

AP: O que explica este aumento do narcisismo nos últimos anos? (Vivemos uma cultura de valorização da autoestima, aliada a tecnologias que permitem e estimulam a autoexposição?) E verifica-se sobretudo nas gerações mais novas, ou esta é uma questão mais cultural/social do que geracional?

FLM: Explicar um aumento do narcisismo, ou mais corretamente, um aumento de um défice narcísico é uma tarefa complexa. No entanto há muitos sinais que apontam para essa tendência da “febre do eu”. É difícil situar a questão numa problemática meramente geracional, isto porque as gerações estão interligadas e se influenciam mutuamente. Talvez faça mais sentido olhar de uma perspetiva de continuidade, em que determinadas mudanças que têm vindo a ocorrer ao longo do último século se espelham com maior intensidade nas gerações mais recentes. Mudaram-se os sistemas políticos, os pilares morais, os valores sociais, as estruturas familiares e, inevitavelmente, o próprio indivíduo.

Parece-me muito acutilante a análise que Gilles Lipovestky tem realizado ao longo das últimas décadas. De uma sociedade pautada pelo vazio para uma sociedade marcada pela deceção. É este sentimento de falta, de defeito e de insuficiência que cada vez mais impera, e para o qual parece não existir nada que o possa suprir. Revela-se uma profunda deceção que nem mesmo o consumismo consegue colmatar. Talvez seja no plano das relações que esta deceção se agudiza, que maior insatisfação encontra. Resta uma luta incessante para contrariar este mal-estar, através de uma individualização extrema, de uma procura voraz de reconhecimento e valorização constante.

AP: Quais são as consequências (positivas e negativas) desta forma de estar na vida? Porque se fala essencialmente nos aspetos negativos quando, na verdade, o facto de estarem sempre ligados, cheios de vontade de criar uma app popular ou um negócio revolucionário, faz muitas vezes com que acabem por encontrar novas e melhores maneiras de fazer as coisas…

FLM: Esta ideia e sentimento de que somos incompletos tem todo um potencial de construção como de destruição. Ou seja, num contexto de narcisismo saudável a perceção de falta pode apontar para o desejo de construir e desenvolver, tendo por base toda uma capacidade de transformação e de criatividade. É tudo aquilo que potencia o crescimento, a maturidade e a procura do outro como diferente de si próprio. E isto pode ser verdade para as criações associadas às novas tecnologias, no mundo dos negócios, como às criações de todas as vertentes artísticas.

Por outro lado, num contexto de narcisismo deficitário a perceção de falta pode apontar essencialmente para uma necessidade de supressão dessa mesma insuficiência, podendo resultar numa centração no próprio em que o outro é procurado tendo em vista o possível retorno. Qualquer relação se torna insatisfatória e até mesmo fonte de sofrimento.

AP: Em última análise (e sem cair em generalizações) os pais também são responsáveis ao serem permissivos, não imporem limites, elogiarem demais e recompensarem por conquistas que noutros tempos não passavam de obrigações (como tirar boas notas, ajudar nas tarefas de casa e portar-se bem)? O segredo, em última análise, passa por educar com equilíbrio? Nem só elogio nem só crítica, de modo a que as crianças aprendam a lidar convenientemente com as frustrações?

FLM: Na verdade os pais são sempre responsáveis por qualquer coisa. Nem que seja pelo simples facto de serem pais. É muito importante que os pais do século XXI possam refletir sobre o impacto que todas estas mudanças da pós-modernidade podem ter na educação e crescimento dos seus filhos. O equilíbrio entre o tempo da família e do trabalho, a fragmentação da estrutura familiar tradicional, as implacáveis exigências sociais, o papel e influência das novas tecnologias no desenvolvimento das capacidades de pensar, sentir e relacionar.

São tantas as mudanças que não sabemos ao certo no que se poderão traduzir no futuro, mas sem dúvida terão um impacto no desenvolvimento de um narcisismo saudável das crianças. É um trabalho de reflexão que deve ser realizado no seio de cada família e envolvendo toda a sociedade.

AP: O excesso de fotos e de exposição nas redes sociais compensam, muitas vezes, o facto de não terem ideia de quem são realmente? Quem passa mais tempos nas redes sociais fá-lo, em última instância, para encontrar a felicidade, mais do que informação e entretenimento?

FLM: Hoje em dia é fácil diabolizar as redes sociais, no entanto defendo sempre alguma prudência sobre esta questão. Não devemos esquecer que as redes sociais têm-se revelado como recursos fantásticos para as mais diferentes áreas. Por exemplo, para a criação de redes de contactos profissionais, para a partilha de investigação e conhecimento científico, para a divulgação de informação e até mesmo para potenciar as relações interpessoais.

Mas é verdade que também podem ser utilizadas unicamente ao serviço do narcisismo. No fundo como se fossem montras ou janelas indiscretas para a vida privada, em que o reconhecimento e a valorização pessoal está intimamente relacionada com o número de likes e partilhas alcançadas. Nesse caso a rede social perde o valor da partilha em si, em que não existe um desejo genuíno de partilhar algo com um outro, mas assume um caráter de espelho que procura responder à eterna questão: “Espelho meu, espelho meu, há alguém tão bela como eu?”. No entanto, parece-me evidente que tal não se aplica à maioria dos utilizadores das redes sociais.

AP: Quais são as características de um narcisista, de um modo geral? Trata-se de um traço de personalidade inato ou a influência social e ambiental também são determinantes? E ter compaixão e sentir-se ligado aos outros será a melhor forma de não se atingir um nível tóxico de narcisismo?

FLM: O narcisismo é algo que é partilhado por todos os indivíduos, e o seu desenvolvimento poderá estar relacionado com questões temperamentais, relacionais e sociais. Poderá assumir diferentes tonalidades, diferentes intensidades e diferentes expressões. No entanto, também pode surgir como uma característica predominante da personalidade e até mesmo como uma característica patológica. São pessoas que revelam um elevado egocentrismo, sentimentos de superioridade e que se reconhecem com qualidades especiais, requerendo admiração e adoração constante.

Porém, esta forma de narcisismo tem inúmeras potencialidades de transformação. Num espectro de maturidade, e perante um reconhecimento e aceitação de limites individuais, encontram-se relações entre o narcisismo e o desenvolvimento das capacidades criativas, empáticas, do senso de humor e da sabedoria.

AP: O culto às celebridades e os reality shows fazem com que o narcisismo pareça normal?

FLM: A questão da fama é um problema antigo, que se aproxima tanto do narcisismo como da imortalidade. Desde a Grécia antiga que a procura da fama e glória sempre se assumiu como uma possível resposta ao problema da finitude do Homem.

Nos tempos atuais, para muitas pessoas as celebridades substituem as funções das religiões, como se fossem deuses adorados que se encontram sentados no Olimpo e que detêm poderes especiais. O medo do ser humano de se sentir como insignificante, mais um diluído no meio da multidão, promove uma procura feroz pelos 15 minutos de fama e pela possibilidade de um lugar nesse Olimpo dos famosos, em que os reality shows podem ser atalhos para esse mesmo local. E é um medo cada vez mais intenso numa sociedade cada vez mais global e cada vez mais individual.

No entanto, o que é curioso é que muitos famosos fazem depender a sua fama do simples facto de serem famosos, e não pelas suas realizações ou capacidades particulares. Parece que tudo adquire uma qualidade efémera e superficial, porque o que fica na memória são os grandes feitos e realizações, e aquilo que está na moda pode cair no esquecimento na próxima estação.

AP: O escritor norte-americano Rob Asghar criticou os jovens de hoje pelos seus hábitos e superficialidade num artigo sobre a Geração Me Me Me (absolutamente generalizador e redutor, a meu ver). Por outro lado, há estudos que garantem que a maioria está mais preocupada em fazer uma diferença positiva no mundo do que com o seu próprio reconhecimento, além demostrar um ativismo de causas e um potencial surpreendentes. O que concluir?

FLM: Não estou particularmente familiarizado com a opinião de Rob Asghar mas encontrei um artigo recente na Forbes em que o escritor partilha os resultados de um inquérito realizado a jovens que compreendem a geração millennial. As respostas ao inquérito indicam que os jovens acreditam que terão que ser mais ágeis, independentes e empreendedores do que as gerações passadas. Este estudo revela alguns resultados interessantes.

De facto qualquer tipo de generalização pode sempre correr o risco de se assumir como redutora. Não faz sentido reduzirmos toda uma geração a uma simples característica. Estamos num período que exige mudança e novas ideias, e certamente que as gerações mais recentes terão um papel determinante. O mundo e o ser humano sempre encontraram uma forma de se organizar a partir do caos.

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