INVEJA
Considerada como um dos sete pecados capitais, a inveja e suas raízes datam desde os primórdios dos tempos, e seus retratos vão desde o livro do Génesis ao mundo cinematográfico.
No mês de Novembro de 2012 a Cosmopolitan Portugal publicou na sua revista mensal um artigo sobre a inveja com o título “Cuidado com as Rasteiras”. Neste artigo a jornalista Rita Tilly explora as diferentes tonalidades da inveja e como esta se revela em diversos contextos relacionais, entrevistando o psicólogo clínico Filipe Leão Miranda no sentido de aprofundar este tema.
Rita Tilly: O que é a inveja e porque a sentimos?
Filipe Leão Miranda: A inveja é um sentimento que surge numa relação entre duas pessoas, e que habitualmente se caracteriza pelo desejo de ter algo positivo que pertence a um outro. Desta forma, está intimamente relacionada com um sentimento de falta, ou seja, com uma incompletude que identificamos em nós mesmos. Podemos então afirmar que a inveja comporta sempre o reconhecimento de uma diferença e de uma comparação, entre aquilo que o outro tem e aquilo que eu não tenho.
Este sentimento está presente em maior ou menor medida na vida afectiva de todos nós, e é algo que surge precocemente no desenvolvimento da criança. Se a infância for marcada por experiências satisfatórias em que o amor e gratificação prevaleceram, podemos afirmar que a bondade será capaz de superar a inveja. Porém, o sentimento de inveja nunca será totalmente apagado da nossa esfera relacional.
RT: Existe inveja boa e inveja má? O que as distingue?
FLM: De certa forma poderemos considerar que existem dois tipos de inveja – a inveja construtiva e a inveja destrutiva.
A inveja que denomino de construtiva é aquela que nos permite uma melhor adaptação ao nosso ambiente, como possibilidade de crescimento. Construtiva, porque a admiração por outra pessoa poderá levar a um melhoramento de nós próprios, promovida por uma inspiração e desejo de emulação, na senda de um desenvolvimento das capacidades. Esta inveja poderá até permitir um reconhecimento das nossas limitações e uma percepção mais realista de quem somos.
Por outro lado, a inveja destrutiva, alimentada pela raiva, aponta para um desejo de “roubar o outro”, como forma de obter aquilo que invejo. Implica uma destruição e compromete a possibilidade de desenvolvimento de uma relação satisfatória com essa pessoa. Isto acontece porque normalmente está associado a uma depreciação do outro – a melhor forma de não invejar é desvalorizando aquilo que invejo. É fonte de sofrimento e origem do ressentimento, sendo que a inveja muito intensa pode levar ao desespero.
RT: Muitas vezes reconhecemos a inveja de alguém próximo, mas tendemos a ignorar ou arranjar uma desculpa para os seus actos. Porquê?
FLM: A inveja é um sentimento marcadamente doloroso, pelo que a sua gestão e o seu reconhecimento se torna muitas vezes dificultado. Conviver com a inveja no seio da relação é uma tarefa árdua, não sendo fácil abordá-la directamente. Porém, essa dificuldade remete não só para o reconhecimento da inveja no outro, mas também em nós mesmos. De tal forma que por vezes negamos esse sentimento dentro de nós, e “passamo-lo” para o outro apesar de nem sempre nos apercebermos deste movimento. A falta e o sentimento de inferioridade que num primeiro momento era nossa, passa a ser identificada no outro, através de pequenas críticas por exemplo.
RT: Sentir inveja é sinónimo de não gostar dessa pessoa, querer a sua infelicidade ou de sobrepor a sua felicidade à do outro?
FLM: Sentir inveja por alguém não implica à partida que não se goste dessa pessoa. Existem sempre coisas que gostamos e que não gostamos nos outros. A inveja está mais próxima de uma lacuna que existe dentro de nós do que um não gostar do outro, que muitas vezes até é admirado ou idealizado. No entanto, se a inveja for muito forte poderá levar a sentimentos de ódio e de destruição, cujo desejo poderá passar pela infelicidade do outro em troca da nossa felicidade, e do preenchimento daquilo que nos falta. Mas é sempre um desejo impossível…
RT: Como lidar com a inveja entre irmãos, entre colegas de trabalho, e entre amigas?
FLM: A inveja é um sentimento que pode surgir em todas as fases da vida, desde a infância, passando pela adolescência, e na idade adulta. Podemos invejar o nascimento de um irmão quando somos confrontados com a realidade de que o mundo não gira à nossa volta, podemos invejar os nossos pares e suas certezas quando temos que lidar com a nossa insegurança e incerteza. Não existe uma receita para lidar com a inveja. Se tivermos capacidade de a reconhecer em nós mesmos poderemos escolher como a queremos “encaminhar” – no sentido de promover o crescimento ou de alimentar a destruição.
RT: Devemos ser mais discretas nas manifestações de sucesso/felicidade perante a pessoa que sente inveja de nós, ou não devemos alterar a nossa postura?
FLM: Cada situação exige uma resposta particular, ou seja, da mesma forma que não existe uma receita para lidar com a inveja, cabe a cada pessoa dentro de cada relação perceber qual a melhor atitude a adoptar. No entanto, se formos fiéis a nós próprios, e se nas nossas manifestações demonstrarmos humildade e que não somos perfeitos, isso poderá promover aproximação em vez de afastamento.
RT: Costuma dizer-se que a inveja é um sentimento mais comum entre mulheres, nomeadamente no local de trabalho. É verdade? Porquê?
FLM: O local de trabalho é um espaço onde muitas vezes as relações são intensas. Existem conflitos, desavenças, encontros e desencontros. A elevada competitividade presente na sociedade actual e os elevados níveis de exigência, são como água para a sede, no que respeita ao desenvolvimento de sentimentos de rivalidade em contexto de trabalho. A inveja, que poderá passar pelo desejo de ter um promoção que outro colega obteve, poderá levar-nos a trabalhar mais arduamente para o conseguirmos também ou a transformar o dia-a-dia num campo de batalha e minar o trabalho do outro. Isto parece-me ser tanto verdade para os homens, como para as mulheres. No entanto, estudos recentes1 indicam que as mulheres referem mais sentimentos de inveja do que os homens, sobretudo quando o seu rival é fisicamente atraente.
RT: Por vezes as pessoas que sentem inveja acabam por se afastar. Devemos procurá-las ou aceitar a sua incapacidade para lidar com o nosso sucesso?
FLM: Quando a inveja é profunda poderá trespassar todas as relações de uma pessoa, e ser fonte de um elevado sofrimento, o que poderá resultar num afastamento ou numa dificuldade em lidar com situações que remetam para esses sentimentos. Mas tão importante como lidar com a incapacidade dos outros, é lidar com as nossas próprias dificuldades.
RT: E se formos nós a sentir inveja, devemos admiti-la sem sentimentos de culpa? Como transformá-la num sentimento positivo, de admiração e felicidade genuínas?
FLM: Muitas vezes o que leva a sentimentos de culpa não é tanto o sentirmos inveja, mas a possibilidade de magoar e fazer sofrer outro. O reconhecimento da inveja é um processo doloroso para o próprio, sobretudo porque exige que se vivencie o sentimento de falta de algo dentro de nós. No entanto, é o passar por esse processo, muitas vezes no seio de uma relação de ajuda, que poderá levar a uma integração desses sentimentos em nós mesmos e aproximarmo-nos da nossa verdade. O esforço de reconhecimento da inveja e de outros sentimentos que flutuam em nós poderá proteger aqueles que nos rodeiam e a nós próprios dos seus efeitos destrutivos.
Referências:
1 Abraham B, Rosario Z, Pilar G, Alejandro C. Intra-sexual competition at work: Sex differences in jealousy and envy in the workplace. Revista De Psicologia Social [serial online]. January 2012;27(1):85-96.